Há filmes cujo enredo é maior do que a obra cinematográfica propriamente dita, tornando-a válida de imediato por meio da apresentação de temas ou pessoas que são parte de nossa realidade cotidiana e nos fazem refletir sobre a sociedade, a política e outros aspectos diretamente relevantes à nossa formação enquanto seres humanos. Este é o caso de “Além da Liberdade” (The Lady), que conta a história real de Aung San Suu Kyi, uma importante líder política da Birmânia que lutou contra a ditadura militar em seu país durante décadas.
Em 1947, Aung San, pai de Suu Kyi (Michelle Yeoh), conseguiu a independência da Birmânia, que deixou de ser colônia da Inglaterra. Sendo assassinado no mesmo ano pelos rivais, Aung San se tornou um mártir em seu país. Em 1962, um golpe de estado colocou no poder militares que instauraram uma ditadura que reprimia violentamente a população. No final da década de 80, o supersticioso general Nyo Ohn Myint (Flint Bangkok) decide renunciar o cargo de chefe de estado, deixando o povo esperançoso por um futuro político mais justo.
Aproveitando o momento oportuno, a população encoraja Suu Kyi a liderar uma revolução política rumo à democracia, por ser filha do homem que é símbolo da revolução para o país. Suu Kyi, na época uma simples dona de casa casada com o inglês Michael Aris (David Thewlis) e mãe de dois filhos, Alexander e Kim (Jonathan Woodhouse e Jonathan Raggett, respectivamente), estando no país apenas momentaneamente para visitar a mãe adoecida, hesita de início pela falta de experiência no assunto e por causa da família.
Porém, ao perceber as atrocidades que acontecem ao seu redor, decide fundar a Liga Nacional pela Democracia, candidatando-se ao governo da Birmânia. Temendo pela ascensão de Suu Kyi ao poder e se negando a simplesmente eliminá-la – visto que tal ato culminaria em um novo mártir e em uma inevitável revolta popular de grande escala –, o general Nyo Ohn Myint decide boicotar a campanha da rival subjugando-a a prisão domiciliar. Apesar de ter vencido as eleições em 1990, Suu Kyi foi impedida de subir ao poder, vivendo sob este regime por mais de 20 anos, conseguindo a liberdade apenas em 2010.
Dirigido por Luc Besson, o longa constrói muito bem o contexto sociopolítico da Birmânia sem esquecer aspectos particulares da protagonista. O roteiro de Rebbeca Frayn é bastante sucinto e positivamente didático neste sentido, deixando-nos a par das motivações dos personagens e da forma como os eventos históricos se desenrolaram na vida real.
Apesar de a história girar em torno da líder democrata e a interpretação de Yeoh convencer bastante – ainda mais pela semelhança física da atriz com a personagem –, quem se destaca mais é Thewlis. O ator consegue transpor as várias camadas de seu personagem – o caráter pacato de pai de família, a dedicação nos assuntos burocráticos da política, a preocupação com sua mulher, a debilitação com a doença – de forma natural. Além de interpretar o marido de Suu Kyi, Thewlis também atua como seu próprio irmão gêmeo Anthony, e neste quesito vale a pena citar os efeitos visuais imperceptíveis de Joel Pinto, que faz as cenas entre os dois fluir de modo incrivelmente realista.
Quatro pessoas dividem a direção de arte do longa: Gilles Boillot, Dominique Moisan, Stéphane Robuchon e Thierry Zemmour. Isto é compreensível pelo fato de a história se passar em dois locais totalmente diferentes (Inglaterra e Birmânia), exigindo um trabalho de pesquisa e realização mais diversificado que o comum. Os quatro fazem um inteligente trabalho em conjunto com a fotografia de Thierry Arbogast, construindo uma irônica discrepância entre os dois países: enquanto as cenas na Birmânia privilegiam cores quentes e valorizam o cenário, na Inglaterra as cores são frias e as locações espaçadas revelam o vazio e o isolamento de Aris. Sua mulher, no entanto, mesmo sendo quem está realmente isolada do mundo, está onde deve e quer, acompanhada ideologicamente pela população, não se sentindo tão sozinha quanto o marido, portanto.
Infelizmente, em alguns momentos Besson parece se escorar totalmente na qualidade e na importância do enredo, limitando-se a uma direção superficial com a utilização de estratégias clichês e antiquadas para a transposição de sentimentos da tela para público. Isso pode ser observado em cenas mais dramáticas, onde a trilha de Eric Serra é genérica e piegas, e principalmente nas sequências que envolvem o “vilão”, em que planos fechados e uma trilha tenebrosa compõem a abordagem do general ditador.
De qualquer modo, “Além da Liberdade” tem mais qualidades do que defeitos. Enquanto obra cinematográfica, não apresenta grandes novidades, sendo até muito rasa em determinados momentos em que poderia ser mais elaborada. Porém, conta uma história muito interessante com um poder de síntese ideal para a linguagem do cinema, além de ótimas atuações.