Especialistas de diversas áreas salientam que há mais de um fator que influencia nesse tipo de gesto, desde a genética, a educação, ao humor da pessoa
Você arriscaria a sua vida para salvar a de outra pessoa? Provavelmente, a resposta seria “depende”. E é verdade. Um ato como esse, de altruísmo extremo, é fruto de muitas variáveis.
Há algumas semanas, Marcos Vinícius de Souza Vasconcelos, de 20 anos, ficou conhecido como “herói da Baixada” após salvar uma mãe e duas gêmeas de um ano que estavam presas no carro no meio de uma enxurrada em Nova Iguaçu. “Não pensei em nada, só queria salvar a vida delas”, disse sobre a ocasião.
Mas por que ele fez isso? Como o cérebro dele tomou essa decisão? Em termos evolutivos, qual o sentido de colocar a vida em risco e não poder passar sua genética adiante? Qual a influência da educação nisso? Será que outra pessoa, na mesma situação, faria o mesmo? E será que ele, em outra situação, também agiria assim? São perguntas que a ciência tenta responder, mas não há uma resposta simples.
— A ciência não tem hoje o preditor que consiga explicar por que ele fez aquilo. Porque é multifatorial. São milhares de variáveis. Se a mesma pessoa tivesse tido, dez minutos antes, uma dor de estômago, talvez não agisse assim. Mas você não consegue reproduzir aquilo para saber por que ele fez — afirma Tiago Bortolini, pesquisador de pós-doutorado na Unidade de Neurociências Cognitiva e Neuroinformática do IDOR-RJ.
De acordo com Bortolini, há o altruísmo normal, que é um comportamento de ajudar o outro — e pode ser conhecido como solidariedade — e se traduz numa doação de dinheiro, trabalho voluntário, cuidar de alguém, fazer as coisas sem um interesse por trás. Mas nesses casos, a pessoa não corre um risco ela mesma. Quando você coloca sua vida em risco, é altruísmo extremo. E esse é mais difícil de explicar.
— A espécie humana é colaborativa per se. E acontece todo tempo. A gente é assim, mas acaba muito focado na parte ruim. Se não fossemos cooperativos, nada funcionaria no planeta Terra. Claro que as vezes mais, as vezes menos. Todo mundo tem essa dimensionalidade — afirma o neurocientista, para quem grande parte da humanidade pode ser o herói de amanhã. — O fato de não ter ajudado num dia não quer dizer que não vai ajudar no outro. Porque a gente tem um padrão, mas a gente também varia muito.
Bortolini explica que até hoje a ciência não sabe dizer como o cérebro toma decisões, muito menos as mais complexas.
— Não tem uma explicação mecanicista ainda. Não existe a região A que falou com a B, a C e a pessoa tomou essa decisão. Se botar você numa ressonância e pedir para apertar um botão da esquerda ou direita, consigo dizer qual vai apertar. Mas se escolher doar R$ 50 para essa causa social ou não, a possibilidade é muito mais baixa. E mesmo que a gente treine a inteligência artificial para isso, ela vai ser boa para predizer o que o Tiago vai fazer, mas não o Marcos. Explicar como foi cerebralmente a decisão do rapaz para ajudar os outros é pura especulação.
O antropólogo e professor da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP) Paulo Niccoli afirma que “o comportamento humano extrapola a natureza”:
— Isso tem a ver com a moral, princípios adquiridos durante a vida. E se desenvolve em três camadas.
A primeira camada, de acordo com Niccoli, é a da sociedade. Envolve ser uma sociedade capitalista ou uma comunidade indígena, por exemplo, a formação cultural e também religiosa. A segunda, é a nível familiar. Então depende de como é a educação, os valores passados, o exemplo dos pais. Mas, depois, há a camada individual, que depende da formação da pessoa, do estado dela naquele momento e da identificação.
Vale destacar a questão da identificação. A pessoa que tem uma relação com determinado evento pode ter um instinto mais pronunciado de ajudar. Marcos Vinícius, por exemplo, já havia experimentado algumas vezes a dor causada por enchentes, conforme disse depois (naquele dia mesmo, sua família perdeu tudo por causa da água). Uma mãe com um filho pequeno pode ter despertado um instinto familiar de salvar um bebê a qualquer custo.
Para Paulo Niccoli, o modelo econômico também molda muito o caráter do indivíduo. Por exemplo, se ele está inserido num mercado profissional “de cada um por si” talvez incorpore esse valor nas suas ações. Por outro lado, “a maioria das religiões preza pelo senso comunitário, então às vezes são bolhas e identificações do eu com o outro”.
— A decisão final é sempre cultural, é fruto de juízos de valor, uma reflexão moral muito rápida se vale a pena ou não o instinto de ajudar — avalia o antropólogo.
Mas o debate ainda não se encerra.
Genética
Os cientistas não podem realizar testes para tentar medir as reações em situações de altruísmo extremo, pelo risco aos participantes. Mas pesquisadores da Case Western Reserve University, em Ohio, nos Estados Unidos, estudaram atos de altruísmo, em geral, e descobriram que a genética seria responsável por 51% desses gestos de bondade.
O trabalho foi feito com 296 gêmeos, idênticos e não idênticos, que foram questionados sobre doação de órgãos.
— Sempre que não se tem como encontrar uma alteração genética que explique uma condição, se faz estudo através dos gêmeos. Compara-se a reação de gêmeos idênticos, que tem 100% a mesma genética, com gêmeos diferentes, que tem DNA diferentes, como dois irmãos normais — explica o geneticista Salmo Raskin, diretor do Centro de Aconselhamento e Laboratório Genetika, em Curitiba.
Assim, caso uma condição, doença ou comportamento seja totalmente determinada pela genética, se um gêmeo idêntico tiver, a chance do outro ter é de 100%. Se não tem nada a ver com a genética, a concordância entre eles é bem baixa.
— É muito difícil de comprovar, mas provavelmente é multifatorial. Alguns autores acreditam que quando há mais a ideia de reciprocidade [ter algum benefício a partir da ajuda] ou o ato é feito entre a família, mais forte o fator genético na decisão. Ao contrário, quanto menor a chance de algum retorno e mais desconhecida a pessoa, maior o componente cultural.
Talvez o altruísmo, mesmo o extremo, seja ele próprio uma evolução da nossa espécie.
— A cultura e biologia coevoluiram, levando a ter mais atitudes altruístas entre humanos. No passado as leis de sobrevivência eram mais severas, hoje há uma abertura maior para ser altruísta — defende Raskin.