Corações palpitantes, emoções à flor da pele, vibração e lamento coletivos: a cada quatro anos, a Copa do Mundo promove renovada sensação de unidade por meio de uma catarse nacional, capaz de agrupar os diferentes em nome do algo maior que se tornou o evento futebol. Não por outro motivo, durante os quase 30 dias de torneio, rotinas são transformadas, e a própria cartografia das cidades se altera. Seja nos interiores ou nas capitais, no asfalto ou nas vilas, becos e favelas, muros, ruas, fachadas de estabelecimentos e calçadas ganham cores com a proliferação de murais que remetem ao universo esportivo, como representações de gols históricos e do tão almejado troféu da Copa do Mundo Fifa, além de caricaturas de jogadores que formam o elenco da seleção e de personagens como o Canarinho Pistola.
Embora se espraiem Brasil e mundo afora, sendo feitas por artistas das mais diversas formações, essas pinturas – que fazem sucesso sobretudo em bairros e comunidades populares, repercutindo nas redes sociais – possuem características comuns, razão pela qual esse tipo de traço é facilmente reconhecido. Afinal, estamos falando de painéis que são expressão de uma vertente estética específica: o design vernacular – expressão que se origina da junção da palavra design com o termo “vernáculo”, que quer dizer “língua própria de um país, nação ou região”.
Caracterizado por ser uma forma não acadêmica de design que engloba soluções materiais, visuais e artefatos do cotidiano que denotam forte ligação com a cultura local e que funcionam como um marcador de determinado período, o design vernacular se faz presente em obras, geralmente feitas “à moda antiga” – ou seja, realizadas de forma totalmente manual –, que podem se utilizar de diversos suportes, técnicas e estruturas, como trabalhos em esculturas, fotografias, letreiros, sinalizações, iconografias, por exemplo.
Evidentemente, um tipo de produção tão vasto – presente, por exemplo, naquelas charmosas plaquinhas de preços expostas em hortifrútis e açougues – não está restrito a Copa do Mundo, ainda que este seja o período em que esse tipo de produção fica mais em evidência. “Nesta época, a demanda aumenta muito, e eu chego a ficar sem agenda”, relata Eder Quirino, artista plástico que assina seus trabalhos como Bob da Pedreira, em referência à Pedreira Prado Lopes, a mais antiga favela de Belo Horizonte, onde ele vive.
Quando conversou com a reportagem, ele finalizava uma série de grafites em uma rua da comunidade da Vila Andiroba, onde, entre outras pinturas, recriou o emblema da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), substituindo a sigla da entidade pela que representa aquela comunidade (CVA). Sobre uma caricatura do atacante Vinícius Júnior, escreveu a frase “Favela venceu”. Ele também recriou o lance em que Richarlison, ex-jogador do América e atual camisa 9 da seleção, marcou de voleio contra a Sérvia. Ao fundo da imagem, representando a torcida brasileira, Bob pintou silhuetas de mulheres e homens negros – uma evidente oposição ao perfil da torcida predominantemente masculina e branca que se vê nos estádios do Catar.
“Essa questão do design vernacular tem a ver com meu DNA, com a minha identidade. Assim como outros elementos do hip-hop sofrem influências regionais e nacionais, o grafite também sofreu – inclusive, fazendo reflexões sobre a brasilidade a partir da absorção de artistas como a Yara Tupynambá, além de mergulhar no cartoon, surrealismo e pop art. Daí, com esse leque de informações e referências, busco manter meu olhar para o local”, sinaliza ele, que se iniciou no universo das artes no ano 2000, por meio do projeto social Guernica, um programa de oficinas artístico-culturais da Prefeitura de Belo Horizonte (PBH) em parceria com o Centro Cultural UFMG e a Fundação de Desenvolvimento da Pesquisa (Fundep).
“E, claro, como todo artista busca contar a história do seu povo, eu também busco levar a imagem da favela para o asfalto”, crava, expondo como o sentimento de pertencimento e sua própria biografia aparecem nos mais de 500 trabalhos espalhados que ele fez, individualmente ou junto ao coletivo Nômade Crew, ao longo dos últimos seis anos, na região metropolitana de BH.
Aliás, em uma cidade que prestigia a arte urbana, inclusive por meio de projetos de grande escala, como o Circuito Urbano de Arte (Cura), Bob tem a expectativa de, junto de outros artistas que mantém viva a tradição do design vernacular, conquistar um espaço vertical para abrigar um tipo de produção artística, que colore a cidade em escala mais modesta graças ao apoio de pequenos comerciantes e de projetos municipais, como o Gentileza, iniciado pela PBH em 2017.
Criatividade e improviso
Bob lembra que também dialoga com essa linguagem de arte popular pelo modo de fazer, muito pautado pela capacidade de improvisar e enxugar custos. “O design vernacular me aponta o caminho para tornar o grafite mais barato e acessível”, acrescenta indicando, por exemplo, ter substituído os onerosos sprays por um compressor.
Esse exercício de criatividade está no cerne desse tipo de produção, como expõe o designer gráfico Paulo Mendonça. “Estamos falando de um tipo de comunicação de massa, em que as pessoas utilizam processos manuais e recorrem àquilo que elas têm em mão – seja parede, papelão, cartolina – para deixar sua mensagem”, avalia, destacando o viés de acessibilidade desse tipo de comunicação.
O interesse de Mendonça pelo tema aflorou no período em que fazia o curso de design gráfico na Universidade Estadual de Minas Gerais (Uemg). “Eu morava em Itabirito, onde nasci, e estudava em BH. Então percebi que minha vivência era completamente diferente daquela dos meus colegas, que já moravam na capital. Notava que, dentro da minha cidade, aquele design muito moderno e tecnológico que estudávamos não se fazia presente”, cita. “Então, por conviver com um modelo de comunicação muito espontânea que eu não via na faculdade, resolvi fazer disso meu objeto de pesquisa”, detalha.
“É um ofício muito complexo e uma técnica geralmente ligada à tradição familiar. Considero uma vertente do design, que, para ficar bem feito, exige do realizador prática e um profundo estudo”, avalia ele, criticando que esse tipo de produção ainda seja esnobado no circuito artístico e no meio do design profissional.
Cronistas sociais
A realizadora de cinema Clara Izabela concorda. “Eu entendo que estamos falando de um ofício. São cartazistas, letristas, artistas visuais. E tem um pouco de narrador, de cronista nesse trabalho, pois estamos falando de obras que estão em todos os lugares e, em conjunto ou individualmente, contam uma história, são um registro de um tempo e de um lugar”, analisa.
Ela menciona, por exemplo, que animais e pratos típicos de determinado território também costumam ser representados nesses painéis. Em cidades litorâneas ou ribeirinhas, peixes e figuras folclóricas, como sereias e botos, costumam ser comuns. “Há também muita iconoclastia, com uma apropriação e até subversão de personagens da cultura pop, que vão ser mais populares a depender da época que aquele projeto foi feito. Podemos notar isso com os vários Pica-Paus feitos a pincel, que são mais antigos, em oposição aos Hulks, geralmente feitos a spray, que são mais recentes”, situa.
Responsável pela página Gráfica Brasil (@handpaintedbrazil), no Instagram, ela faz o esforço de catalogar a design vernacular brasileiro, compartilhando esses registros na rede social. “Sempre tirei muita foto desse tipo de pintura. Em 2018, percebi que tinha muitas imagens e criei esse perfil”, explica. “Mais recentemente, entrei no grupo de WhatsApp Letristas do Brasil e me aproximei ainda mais desse universo, falando com esses criadores, seguindo pintores…”, acrescenta.
Para Clara, uma das partes mais divertidas dessa empreitada é o retorno que tem dos seguidores. “É um trabalho que trato com muito respeito. Inclusive, tenho muito cuidado para não virar meme, embora, obviamente, algumas artes sejam, sim, engraçadas”, pondera ela, orgulhosa de perceber que mais pessoas estejam reparando mais nessas produções. “Quando posto uma foto, imediatamente muitas pessoas vêm relatar memórias, dizer que passaram por aquela pintura, coisas assim”, comenta.
A inovação contra as limitações
Professor da disciplina de design e planejamento gráfico na Universidade do Estado do Mato Grosso (Unemat), Lawrenberg Advincula da Silva pesquisa a expressão e potência do design vernacular e, assim como Paulo Mendonça e Clara Izabela, questiona o olhar de desdém que se volta contra esse tipo de produção – “sobretudo de camadas habituadas à linguagem publicitária considerada profissional”, aponta.
“O que pude compreender estudando a relação desses trabalhos com as pessoas é que, para além do marcador econômico – uma vez que muitas dessas produções precisam se adequar a uma realidade de limitação material, sendo feitos até mesmo à noite e sendo, para muitos, um complemento de renda –, estamos falando de uma questão profundamente cultural. Há uma identificação com o meio capaz de fazer que essa comunicação, que por vezes soa mais rudimentar e precária, funcione melhor nesses espaços do que uma estética entendida como mais profissional”, estabelece.
“Aliás, um dos grandes méritos dessa forma de produzir está relacionado ao fato de, mesmo esbarrando em uma série de limitações, e talvez exatamente por isso, temos como resultado trabalhos que apresentam criatividade e até inovação”, elogia, mencionando que elementos presentes no imaginário popular – como jogadores de futebol, desenhos animados e outros personagens da cultura pop – costumam ser representados nesses painéis. “Há também representações que falam de um certo modo de vida, seja ele com um viés de ostentação, em alguns espaços, ou até de contemplação de uma vida mais simples, em outros”, assinala.